Animais deixaram vestígios na areia há 140 milhões de anos; paleontólogo da Ufscar reuniu mais de mil lajes de arenito com rastros
Há um mês, Valéria Ribeiro comprou uma lanchonete na Rua Itália, em Araraquara, interior de São Paulo. Do antigo dono, ouviu histórias sobre pegadas de dinossauro na calçada. Sozinha, não encontrou nada. Precisou da ajuda do paleontólogo Marcelo Adorna Fernandes para identificar, em uma laje do calçamento, a pegada do réptil de três dedos que viveu há 140 milhões de anos na região.
Valéria não sabia que os pavimentos da cidade - retirados de pedreiras de arenito, hoje desativadas - guardam memórias jurássicas. A região já esteve na borda de um imenso deserto: um cenário desolador que se estendia por 1,3 milhões de quilômetros quadrados até o Uruguai.
Nos oásis de Araraquara, os animais matavam a sede e deixavam seus rastros sobre a areia molhada. O vento cobriu as pegadas com o pó das dunas e o tempo se encarregou de transformar a areia em rocha.
As condições geológicas e de umidade não conservaram as ossadas fósseis dos dinossauros. Contudo, foram perfeitas para preservar seus rastros.
Martelo e cinzel. Em 1984, Fernandes gastou 4 mil cruzeiros - R$ 15, em valores corrigidos - para comprar a edição de novembro da revista Ciência Hoje. O título "Dinossauros do Brasil" despertou o interesse do rapaz de 15 anos quando passava pela banca de jornais. Ao ler a revista, descobriu que Araraquara, sua cidade, tinha pegadas pré-históricas.
Hoje, Fernandes trabalha na Universidade Federal de São Carlos (Ufscar). Cuida da maior coleção de pegadas fósseis do Brasil, com quase mil peças. Parte do acervo ocupa dois ambientes do Departamento de Ecologia e Biologia Evolutiva da universidade. Também há muitas pedras encostadas nas paredes da casa do pesquisador, esperando um abrigo definitivo.
A joia do acervo - uma trilha com cerca de 4 metros - está guardada em um galpão emprestado da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM). O rastro pertenceu a um ornitópode, dinossauro herbívoro e bípede, que tinha 5 metros de comprimento - do focinho à ponta da cauda -, 3 metros de altura e pesava 2 toneladas. A peça foi achada na pedreira São Bento, a 15 quilômetros do centro de Araraquara, e valeu uma conferência no Congresso Brasileiro de Paleontologia, em 2007.
Fernandes passava horas nas pedreiras - origem de boa parte do calçamento da região -, acompanhado da mulher, a bióloga Luciana, parceira nas pesquisas e na busca das pegadas.
Com martelo e cinzel, funcionários desprendiam lajes de arenito como se destacam folhas de um livro ancestral. O pesquisador ensinou-os a procurar nas páginas da rocha vestígios da pré-história. Diante de uma irregularidade na superfície, chamavam Fernandes. Se ele confirmasse a descoberta, embarcavam a peça no Ford Courier do casal.
Precursores. Mas o primeiro registro fóssil da região de Araraquara não foi identificado nas pedreiras. Estava exposto em uma calçada da vizinha São Carlos. Em 1911, o engenheiro de minas Joviano Pacheco ficou intrigado com as pegadas no arenito cor-de-rosa do passeio público. Hoje, a pista fóssil descansa nas coleções do antigo Instituto Geográfico e Geológico, na capital.
Durante décadas, os fósseis urbanos permaneceram esquecidos. Em 1976, um evento casual tirou-os da escuridão. O padre italiano Giuseppe Leonardi viajava para o norte do Estado. No caminho, sofreu uma incômoda dor de dente. Resolveu descer na Rodovia Washington Luís para se tratar na Faculdade de Odontologia da Unesp de Araraquara. No caminho, olhava para o chão. Apaixonado pela paleontologia, percebeu o tesouro que tinha debaixo dos pés. Em 1983, solicitou a retirada de duas toneladas de lajes das ruas, levadas aos galpões do Departamento Nacional de Produção Mineral.
Intercâmbio. O artigo de Ciência Hoje lido por Fernandes foi escrito pelo padre Leonardi. Em 1989, o missionário deixou o Brasil e hoje vive em Kinshasa, no Congo. Continua pesquisando e publica artigos científicos. Mereceu uma breve biografia na Enciclopédia dos Dinossauros, do Museu Americano de História Natural: "(Leonardi) sistematizou informações sobre pegadas fossilizadas em escala continental."
Fernandes só conheceu pessoalmente padre Leonardi quando começou a participar de congressos científicos. Em uma caixa na estante, ele guarda recordações do seu precursor na paleontologia: cadernos de folhas quadriculadas que o padre usava para anotações de campo. Em um dos blocos, há desenhos de rastros deixados por galinhas nas dunas de Salvador, na Bahia, um termo de comparação para pegadas de dinossauros bípedes.
O pesquisador brasileiro seguiu os passos do mestre italiano. Diante de um provável registro fóssil de urina, procurou um animal que, em condições análogas, poderia deixar um vestígio semelhante. Em vez de galinhas, usou o avestruz, uma das poucas aves que expelem líquidos. O trabalho foi publicado em 2004 na Revista Brasileira de Paleontologia. Representa o primeiro registro oficial de urólito - como foi batizado - da história.
Fauna antiga. As calçadas de Araraquara também contêm inúmeros registros de pequenos mamíferos que viviam à sombra dos dinossauros: na maioria das vezes, com o tamanho de um camundongo e sempre menores que um gato. Fernandes aponta uma razão simples para dimensões tão discretas: "Serviriam de banquete." O império dos mamíferos só começou depois da extinção dos répteis gigantes.
Em 1981, padre Leonardi atribuiu um nome científico aos rastros de mamíferos gravados no arenito: Brasilichnium elusivum, pegadas normalmente bem definidas com quatro pequenos dedos. É impossível concluir se pertencem à mesma espécie ou - com maior probabilidade - a animais parecidos.
Artrópodes completam a fauna antiga. Uma bela laje apresenta com nitidez os círculos produzidos pelas patas de um escorpião pré-histórico. Um risco entre as pegadas denuncia a cauda com o ferrão que o animal arrastava atrás de si. Besouros e vermes de areia também deixaram suas marcas fósseis.
Cena insólita. Em um texto de março de 2006, o escritor Ignácio de Loyola Brandão recordou que jogava bolinha de gude nos "buraquinhos e sulcos" das calçadas da sua Araraquara natal. Só quando visitou a exposição Dinos, na Oca, no Parque do Ibirapuera, descobriu que a brincadeira ocorria sobre rastros de bichos pré-históricos.
Mas algumas crianças aprendem cedo a história escondida no passeio público. Quando lecionava no ensino fundamental, Fernandes costumava levar os alunos para um passeio nas ruas e avenidas da cidade.
Sob o olhar atento dos estudantes, desvendava a cena insólita testemunhada pelas pedras. Pequenos mamíferos alimentam-se de insetos da areia e servem de cardápio para celurossauros - ancestrais das aves - que bebiam água nos oásis do deserto. Ao lado, ornitópodes comem a vegetação na borda da lagoa.
Na praça do Parque Infantil de Araraquara, há uma laje com vestígios de gotas d"água. Lembram a areia da praia quando cai a chuva. Na verdade, registram outra tempestade, muito mais antiga. Um provável prenúncio das mudanças geoclimáticas que decretaram o fim do deserto pré-histórico e de seus habitantes.
Fonte:
- Estadão
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