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quinta-feira, 1 de julho de 2010

Prólogo: "A mordida do raptor"

Chovia a cântaros naquela região tropical, a água martelava o teto de zinco da clínica, descia gorgolejando pelas calhas galvanizadas, explodia no chão em uma torrente. Roberta Carter suspirou, olhando pela janela. Ali da clínica mal dava para ver a praia, ou o oceano ao longe, encoberto pela neblina baixa. Não era bem isso que esperava quando chegara a Bahia Anasco, uma vila de pescadores na parte oeste do litoral da Costa Rica, para passar dois meses como médica visitante. Bobbie Carter procurava sol e sossego, depois de dois anos estafantes de residência no pronto-socorro do hospital Michael Reese de Chicago.

Ela já se encontrava há três semanas em Bahia Anasco. E chovia diariamente.

No mais ia tudo bem. Gostava do isolamento da região e da cordialidade das pessoas. A Costa Rica possuía um dos vinte melhores serviços médicos do mundo, e até naquela vila remota da costa havia uma clínica bem aparelhada. Manuel Aragón, o enfermeiro, era inteligente e bem treinado. Bobbie conseguia praticar o mesmo nível de medicina a que se habituara em Chicago.

Mas como chovia! Uma chuva constante, interminável!

Do outro lado da sala de atendimento, Manuel virou a cabeça.

— Escute — falou.

— Creia em mim, eu escuto — Bobbie retrucou.

— Falo sério. Ouça.

Só então ela percebeu outro som, misturado à chuva, um ronco surdo que engrossou até encorpar o suficiente para ser ouvido claramente: o latejar ritmado de um helicóptero. Pensou que era loucura voar com um tempo daqueles.

Mas o som cresceu mais, e o helicóptero rompeu a névoa do oceano e roncou acima deles, circulou e voltou. Ela viu quando o aparelho balançou por cima da água, perto dos barcos de pesca, depois passou de lado pelo instável cais de madeira e retornou à praia.

Procurava um lugar para pousar.

Era um Sikorsky barrigudo, com uma listra azul na lateral, com as palavras "InGen Construções", nome da companhia responsável por um novo empreendimento turístico numa das ilhas. Tratava-se de um local de veraneio espetacular, além de muito complicado; diversos moradores locais tinham sido contratados para a obra, que já se arrastava havia mais de dois anos. Bobbie podia imaginar direitinho como seria — um imenso complexo hoteleiro do tipo americano, com piscinas e quadras de tênis, onde os hóspedes podiam jogar e tomar seus daiquiris sem ter nenhum contato com a vida real do país.

Bobbie ficou a imaginar o que haveria de tão urgente na ilha para obrigar o helicóptero a voar no meio da tempestade. Viu, pela janela, quando o piloto suspirou aliviado, ao conseguir pousar na areia molhada da praia. Homens uniformizados saltaram, escancarando a porta lateral. Ela ouviu gritos frenéticos, e Manuel a cutucou delicadamente.

Eles precisavam de um médico.



Dois empregados negros carregaram um homem prostrado até ela, enquanto um branco gritava ordens. O sujeito branco usava um impermeável amarelo. O cabelo ruivo despontava nas beiras do boné de beisebol dos Mets.

— Tem um médico aqui? — perguntou, quando ela se aproximou.

— Sou a doutora Carter — respondeu Bobbie. A chuva forte martelava sua cabeça e seus ombros. O ruivo franziu a testa para ela, que usava jeans e uma blusa curta. Carregava o estetoscópio no ombro, já meio enferrujado por causa da maresia.

— Sou Ed Regis. Trouxemos um homem muito doente, doutora.

— Então é melhor levá-lo para San José — ela disse. San José era a capital, e ficava a vinte minutos de distância, pelo ar.

— Seria bom, mas não conseguiríamos passar as montanhas com este tempo. Vai precisar cuidar dele aqui mesmo.

Bobbie caminhou ao lado do homem ferido enquanto o carregavam para dentro da clínica. Era moço, quase menino, dezoito anos no máximo. Erguendo a camisa empapada de sangue, ela viu um rasgo ao longo do ombro, e outro na perna.

— O que aconteceu?

— Acidente de trabalho — Ed gritou. — Caiu. Uma retroescavadeira passou por cima dele.

O rapaz estava pálido, trêmulo, inconsciente.

Manuel ficou parado na porta verde brilhante da clínica, indicando o caminho. Os homens transportaram o ferido para dentro, e o acomodaram na mesa existente no centro da sala. Manuel providenciou soro por via intravenosa, e Bobbie acendeu a luz sobre o rapaz, debruçando-se para examinar os ferimentos. Imediatamente percebeu que o estado do moço era crítico. Morreria, com toda certeza.

Uma laceração larga começava no ombro e terminava no torso. No final do ferimento, a carne se reduzira a tiras. No centro, o ombro fora deslocado, expondo os ossos claros. Um segundo golpe retalhara os músculos pesados da coxa, em profundidade, deixando visível a pulsação da artéria femoral sob eles. A primeira impressão de Bobbie foi de que a perna havia sido rasgada.

— Fale mais sobre o acidente — pediu ao ruivo.

— Eu não vi nada. Disseram que a retroescavadeira o pegou.

— Parece até que foi atacado por uma fera — ela comentou, examinando a ferida. Como a maioria dos médicos de pronto-socorro, lembrava-se detalhadamente de pacientes que atendera há anos. Havia tratado de dois casos de ataque por animais. No primeiro, uma criança de dois anos fora mordida por um cão Rottweiler. No outro, um funcionário do circo embriagado tivera um encontro com o tigre de Bengala. Os dois ferimentos eram similares. As marcas deixadas por animais possuíam um aspecto inconfundível.

— Atacado? Que nada! Impossível, acredite em mim — Ed contestou, molhando os lábios com a língua ao falar. Agia evasivamente, como se houvesse feito algo de errado. Bobbie ficou intrigada. Caso utilizassem mão-de-obra local, sem qualificação, na construção do balneário, os acidentes certamente seriam comuns.

— Quer uma limpeza? — Manuel indagou.

— Sim. Depois da anestesia.

Abaixando-se mais, ela tateou o ferimento com a ponta do dedo. Se uma retroescavadeira o atingira, haveria terra entranhada na carne. Mas não encontrou nenhuma sujeira, apenas uma espécie de espuma, pegajosa. E o ferimento emitia um odor estranho, como um cheiro de morte e podridão. Ela nunca havia sentido um cheiro assim antes.

— Há quanto tempo ocorreu o acidente?

— Cerca de uma hora.

Mais uma vez Ed Regis mostrou seu nervosismo. Era um tipo ansioso, agitado. E não tinha cara de empreiteiro da construção civil. Parecia um executivo. Obviamente, estava fora de seu ambiente.

Bobbie Carter concentrou-se nos ferimentos. Não conseguia identificar um trauma mecânico. As indicações não conferiam. Nenhuma contaminação por terra no local atingido, nenhuma contusão. Traumas mecânicos de qualquer origem — acidente de automóvel ou numa fábrica — quase sempre apresentavam contusões. Mas não havia nenhuma. Em vez disso, a pele do paciente fora rasgada — lacerada — no ombro e na coxa.

Na verdade parecia mais uma mordida. Por outro lado, o corpo não apresentava arranhões generalizados, típicos de um ataque de animal. Ela examinou novamente a cabeça, os braços, as mãos...

As mãos.

Sentiu um arrepio ao olhar para as mãos do rapaz. Havia cortes pequenos, rasgos nas palmas, e pontos arroxeados nos punhos e ante-braços. Ela trabalhara em Chicago tempo suficiente para saber o que significavam.

— Muito bem — disse a Ed —, espere lá fora.

— Por quê? — ele perguntou alarmado. Não gostara da ordem.

— Quer que eu o ajude ou não? — impacientou-se Bobbie, empurrando-o e fechando a porta na cara dele. Não sabia o que se passava, e não se sentia à vontade.

Manuel hesitou.

— Continuo a limpeza?

— Sim — ela concordou, erguendo a Olympus de foco automático. Tirou várias fotos dos ferimentos, posicionando a luz para conseguir detalhes. Parecia mesmo uma mordida, pensou. O rapaz gemeu, e ela guardou a câmera, debruçando-se sobre o paciente. Os lábios dele moveram-se, a língua enrolada.

— Raptor — ele murmurou. — Lo sa raptor...

Ao ouvir tais palavras, Manuel gelou, recuando horrorizado.

— O que quer dizer? — Bobbie perguntou. Manuel abanou a cabeça.

— Não sei, doutora. Lo sa raptor não é espanhol.

— Não? — Para ela parecia espanhol. — Por favor, prossiga com a limpeza.

— Não posso, doutora. Cheiro ruim. — Ele franziu o nariz e fez o sinal da cruz.

Bobbie deteve-se nos restos de espuma pegajosa existentes no ferimento. Tocou-a, esfregando o material entre os dedos. Assemelhava-se um pouco com a saliva.

Os lábios do rapaz ferido mexeram-se de novo.

— Raptor — sussurrou.

— Ele o mordeu — disse Manuel aterrorizado.

— Quem o mordeu?

— O raptor.

— O que é raptor?

— Significa hupia.

Bobbie franziu a testa. Os costarriquenhos não eram excessivamente supersticiosos, mas já ouvira menções aos hupias na vila. Segundo a lenda, eram aparições noturnas, vampiros sem rosto que raptavam crianças pequenas. Viviam antes nas montanhas da Costa Rica, e agora habitavam as ilhas da costa.

Manuel recuara, fazendo de novo o sinal da cruz e murmurando:

— Este cheiro não é normal. Foi um hupia.

Bobbie estava a ponto de ordenar que o enfermeiro voltasse ao trabalho quando o rapaz machucado sentou-se na mesa, com os olhos arregalados. Manuel gritou apavorado. O paciente gemeu e virou a cabeça, lançando um olhar esgazeado para um lado e para outro, e em seguida vomitou uma golfada de sangue. Entrou imediatamente em convulsões, o corpo todo vibrando. Bobbie o agarrou, mas ele pulou da cama para o chão cimentado. Vomitou outra vez. Havia sangue por toda parte. Ed abriu a porta, gritando:

— Ei, o que está acontecendo aqui? — Mas quando viu tanto sangue recuou, com as mãos na boca.

Bobbie pegou um bastão para colocar entre os dentes do rapaz, mas percebeu que seria inútil. Com um espasmo final ele relaxou e ficou quieto, estendido no chão.

Ela se abaixou para fazer a respiração boca a boca, mas Manuel segurou seu ombro, puxando-a.

— Não. O hupia vai pegá-la.

— Manuel, por favor...

— Não. — Ele a encarou alucinado. — Não pode entender estas coisas.

Bobbie olhou para o corpo no chão e concluiu que não faria diferença; era impossível ressuscitá-lo. Manuel chamou os outros homens, que entraram na sala e levaram o corpo embora. Ed surgiu, limpando a boca com as costas da mão, resmungando:

— A senhora fez o possível, doutora.

Ela observou os homens que levavam o corpo de volta ao helicóptero e partiam trovejando rumo ao céu.

— Melhor assim — Manuel comentou.

Bobbie pensava nas mãos do rapaz. Estavam cobertas de cortes e machucados, um padrão característico de tentativa de defesa. Tinha certeza absoluta de que ele não sofrerá um acidente de trabalho. Havia sido atacado, e erguera as mãos para se proteger.

— Onde fica essa ilha de onde vieram?

— No oceano. Mais ou menos a cento e cinqüenta ou duzentos quilômetros da costa.

— Meio longe para um balneário. Manuel observou o helicóptero.

— Espero que não voltem nunca mais aqui.

Bem, pensou Bobbie, pelo menos tinha tirado as fotos. Mas ao virar para a mesa, viu que a câmera desaparecera.

À noite a chuva finalmente parou. Sozinha no quarto atrás da clínica, Bobbie folheava o dicionário espanhol de bolso já muito manuseado. O rapaz falara em "raptor", e apesar do que Manuel afirmara, ela suspeitava que se tratava de uma palavra espanhola. E não deu outra, estava lá no dicionário. Significava "seqüestrador" ou "raptador".

Isso a fez pensar. O sentido da palavra era perturbadoramente próximo ao significado de hupia. Claro, ela não acreditava em superstições. E os cortes na mão não poderiam ter sido feitos por uma aparição. O que o rapaz tentara dizer a ela?

Ouviu gemidos no quarto ao lado. Uma das mulheres da vila entrara em trabalho de parto, e Elena Morales, parteira local, a auxiliava. Bobbie voltou à clínica e chamou Elena para fora por um instante.

— Elena...

— Sim, doutora?

— Sabe o que é um raptor?

Elena era uma sessentona grisalha, uma mulher forte, com os pés no chão, pouco dada a fantasias. Sob o ar da noite ela franziu o cenho e repetiu:

— Raptor?

— Sim. Já ouviu essa palavra?

— Já. Quer dizer... alguém que entra à noite e leva uma criança.

— Um seqüestrador?

— Sim.

— Um hupia?

A atitude da mulher mudou de imediato.

— Não diga essa palavra, doutora.

— Por que não?

— Não fale em hupias agora — Elena pediu com firmeza, indicando com um movimento da cabeça a mulher que se preparava para o parto. — Não convém dizer essa palavra.

— Mas um raptor morde e lacera as vítimas?

— Morde e lacera? — Elena pareceu surpresa. — Claro que não, doutora. Nada disso. Um raptor é um homem que leva um bebê embora. — Ela parecia irritada com a conversa, ansiosa para encerrá-la. Recuou em direção à clínica. — Eu aviso quando ela estiver pronta, doutora. Creio que ainda demora uma hora, talvez duas.

Bobbie olhou para as estrelas, e ficou ouvindo o movimento suave das ondas na praia. Na escuridão, identificou as sombras dos barcos pesqueiros ancorados. A paisagem era tão normal, tão calma, que se sentiu como uma tola, por falar em vampiros seqüestradores de bebês.

Retornou ao quarto, lembrando-se novamente de que Manuel insistira em afirmar que a palavra não era espanhola. Por curiosidade, procurou o termo no dicionário da língua inglesa, e para sua surpresa encontrou um verbete também ali:



raptor (do latim raptor, seqüestrador, der. de raptus, seqüestro, rapto): ave de rapina.

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